Sobre Papa-Capim: Noite Branca
Vamos começar, como dita a regra, pelo início: o telefonema.
Era final de tarde de um dia muito estressante de trabalho quando meu telefone tocou e, do outro lado, ninguém menos do que o Sidney “Sidão” Gusman ligando.
Bom, você, leitor, provavelmente não sabe, mas desde que as Graphics MSP foram criadas, criou-se também, com elas, uma espécie de “mito” em torno dos telefonemas do Sidão. Ele só faz os convites por telefone. Então, se você é um artista, pode imaginar o ‘friozinho’ na barriga quando, no identificador de chamadas do seu celular, aparece o nome dele...
Apesar de nossa amizade de longa data, por causa desse “mito”, comigo não foi diferente. Minha barriga gelou um pouquinho (a verdade era que eu queria muito participar!) e, logo, ele anunciou a razão pela qual seus telefonemas ganharam esse status tão especial: era o convite para fazer a Graphic do Papa-Capim e com ninguém menos do que Renato Guedes! Muita gente ficaria muda, eu dei um sonoro grito de alegria! Que honra! Que convite mais do que especial!
O desafio, no entanto, era enorme: ele queria uma história de terror vivida por Papa-Capim! Bom... Pensando bem, acho que era o que faria sentido pra mim... Assim, passada a euforia dos primeiros momentos, chegara a hora de pensar sobre o argumento. Que história contar? Sem falar na responsabilidade de escrever para um “monstro” da narrativa como Renato Guedes!
Comecei a pesquisar as diferentes culturas indígenas do Brasil à procura de alguma história que me inspirasse. Encontrei alguns mitos bem interessantes e apresentei um primeiro projeto. Não rolou. Ainda não era aquilo... Ao invés de me desanimar, me aprofundei ainda mais nas pesquisas. Mas a verdade era que eu queria uma ideia que pudesse congregar um apanhado geral da cultura indígena e que contivesse uma mensagem para nossa geração! Eu não queria que fosse só uma história de terror, queria algo que tratasse do terror real, algo que nos aproximasse de horrores que nos são desconhecidos, não porque são culturalmente distantes de nós, mas porque não fizeram parte de nossa experiência como indivíduos.
A resposta veio naturalmente: para o índio, que horror maior poderia ter existido do que o horror provocado pelo processo de colonização? Aí estava a premissa. Agora faltava o argumento.
Os Tatus Brancos são personagens pouco conhecidos de nosso folclore. Remontam à época dos Bandeirantes e à região de São Paulo e Minas Gerais. Tratava-se, segundo a lenda, de uma tribo de índios habitantes de cavernas e que seriam canibais. Ouvi falar deles, pela primeira vez, numa conversa com Leandro Del Manto, editor de alguns de meus trabalhos. Ele havia lido sobre os Tatus Brancos num dos livros de lendas brasileiras recolhidas por Câmara Cascudo. Lembrei-me dessa conversa e pus-me a pesquisar novamente.
Se “Drácula”, de Bram Stocker, é a metáfora perfeita para a nobreza europeia na sua melhor forma, podemos dizer que os Tatus Brancos foram a grande inspiração que deu origem aos personagens que criei: os ‘Noite Branca’, uma mistura do clássico vampiro europeu (e tudo o que sua metáfora carrega!) com esses assustadores e sobrenaturais canibais do folclore brasileiro.
O nome, ‘Noite Branca’, faz alusão à escuridão e ao horror trazidos para o mundo dos índios quando da chegada dos colonizadores. Sejamos francos: nosso índio está imerso numa Noite Branca desde a chegada do europeu. Se hoje a figura do colonizador não existe mais, este foi substituído pelo nosso modelo de produção agrária, que vê o índio como uma barreira ao avanço dos interesses econômicos.
Essa é uma questão central em nosso país que não tem sido discutida com a sociedade no nível de profundidade e alcance que deveria ser. Vemos, diariamente, ataques sendo empreendidos contra os direitos das populações indígenas, de diferentes formas. Engana-se quem acha que matar um índio é somente tirar-lhe a vida (coisa que sabemos que acontece também!). Matar um índio é também tirar-lhe a terra, é expropriar-lhe seu lugar no mundo, é força-lo a uma integração indesejada e impossível. Mas nós não entendemos isso.
Durante a pesquisa, muitos outros elementos de nossa cultura mais antiga, e também de nosso folclore e literatura, foram sendo incorporados à trama. “ I - Juca Pirama”, por exemplo, poema indianista de Gonçalvez Dias, foi adaptado para integrar o texto. A própria Natureza, naturalmente, não poderia deixar de dividir a cena com nosso protagonista. Por isso fiz questão de tratá-la como um personagem central e indispensável, tal como é (e deve ser tratada) a Natureza real. Finalmente, os relatos recolhidos por antropólogos e outros pesquisadores foram peça fundamental para a composição da trama e dos ‘Noite Branca’, pois confirmavam o horror real desse processo, dito civilizador, a que nossos antepassados foram submetidos. Um horror que hoje, mais do que nunca, precisa ser revisitado para que as gerações futuras não incorram nos erros das gerações passadas.
Espero, sinceramente, que a mensagem que tentei passar tenha chegado de forma suave, divertida, como os gibis devem ser. Foi, sem sombra de dúvidas, um dos trabalhos que mais me deu alegria em fazer, num projeto editorial do qual tenho enorme honra de ser parte.